SEM WIXIA
Daniel Andrade
Este conto foi vencedor do I Concurso Literário da Semana do Servidor, promovido pela Procult (então Secult-Arte), em 2020.
Publicado originalmente no livro Coletânea Travessia – Contos e Crônicas.
A palavra yanomami 'wixia' significa algo próximo de sopro de vida.
Cena 1. Canindé, Ceará. 6h56min. Silêncio significativo no quarto.
Sim-One acordou ofegante. Certas passagens do sonho estão bem nítidas. Ela não abre os olhos e se concentra nos fiapos de imagem. Imóvel. Passa enfim as mãos no pé direito, como a verificar qualquer coisa. Cada vez menos cega do filme que ainda não foi arquivado. Lembra-se de uma turbina de avião. E de uma atmosfera irrespirável. Cada vez mais ciente do entrelaçar-se involuntário e pouco firme de fragmentos de informação onírica, colando-se uns nos outros à medida que os olhos fechados de Sim-One seguiam os da sua versão sonhada. Os circuitos neurais previamente estimulados em vigília foram reativados no sono e no sonho. Enquanto isso, a melatonina propiciava o melhor ambiente para acolher a reorganização útil de informações. O critério dessa utilidade, muitas vezes, é subconsciente: derivado da interação entre estruturas informacionais de energia, não disponíveis pelo menos no momento para a atenção e para o comportamento voluntário da jovem. As estruturas de energia se ativam com frequência acompanhando o ritmo de outras redes. A respiração ainda não se estabilizou.
Ofegante, Sim-One não detecta informações confiáveis sobre o possível êxito de certas vivências arriscadas; a simulação do fracasso já invade a sua mente, mal desperta. Pontada no coração. O seu amado, se as vivências dele se aproximarem das que ela simulou sem querer, será o terceiro brasileiro assassinado simplesmente por insistir em ver o território onde nasceu como um lar compartilhado e não uma fazenda exótica a ter todos os recursos arrancados em poucos e curtos ciclos não renováveis. S.H., em uma das linhas temporais possíveis, será nomeado candidato a algum Nobel ligado indiretamente à neurociência cognitiva. Com isso, ganha automaticamente a certeza da aniquilação iminente.
Cena 2. Sobral, Ceará. 9h05min. Som suave de dubstep.
Sim-One acordou sorrindo, com a porta do quarto a abrir-se.
S. H.: “Acabou o sono prolongado. Hora de se alimentar gostoso. Olha o cheirinho bom!”
SIM-ONE: “Hum, ‘tava sonhando com essa xícara. Mais cheia ainda.”
S. H.: “Gulosinha.”
Café da manhã a dois na cama. Silêncio.
SIM-ONE: “Amor, então é hoje mesmo?”
S. H.: “Sim.”
Cena 3. Porto, Península Ibérica. 14h
A televisão está ligada, na churrascaria brasileira. Se alguém prestasse atenção, escutaria não as canções mais populares de 2023 – sobre casais se enganando de forma previsível no day-trade da mediocridade afetiva e social, berrando de caixinhas de som –, mas escutaria algo como o seguinte. Lembro quase cada palavra de cor, de tanto que já ouvi.
Depois de dois brasileiros misteriosamente mortos na semana em que se noticiou sua premiação em Estocolmo, o célebre nome do jornalista-cientista ianomâmi raramente aparece na mídia nacional. O seu deslocamento, faz três anos, também está restrito ao percurso aéreo semestral desde o Instituto do Cérebro, em Natal, até a Reserva de Pessoas Nativas do Brasil Pré-Cabral, em Porto Seguro, e vice-versa. Fora isso, evita sair mais de uma vez por quinzena mesmo para se abastecer no comércio local. A única visita que recebe: a namorada, que passa de três a cinco dias com ele numa semana e os demais com o filho quase adulto.
Mesmo nessas condições, S.H., com novo corte e coloração de cabelo, lentes de contato, novas roupas, hábitos e endereço, não para de usar o seu recente anonimato local para articular pessoas ainda com fôlego para driblar a perseguição sistemática a qualquer ação destinada a impedir uma coisa: que a desertificação da antiga floresta tropical chegue rápido ao Ceará, à Bahia, a Minas Gerais e a São Paulo. Tudo a oeste dessa linha é quase totalmente desabitado, fora ocasionais militares e acadêmicos dos EUA, da China e dos Emirados Árabes, sempre muito bem equipados e protegidos.
O fôlego de alguns, o de S.H. incluído, ainda dá conta de outras ações planejadas como concluir, clandestinamente, um sistema eletrônico de simulação estratégica da consciência humana. Baseia-se em uma teoria brasileira sobre o armazenamento descontínuo e probabilístico de padrões de distribuição de cargas elétricas, em redes de sinapses com graus variados de corticalização, integração e expressão gênica. O sistema permite fazer experimentos precisos e confiáveis de reconfiguração quer de crenças, quer de padrões comportamentais ou de padrões de interpretação e estruturação de estímulos. Trata-se de uma máquina de análise e processamento de vivências humanas reais e possíveis.
No Brasil, não se fala mais em público sobre a teoria e a tecnologia desde que Moura Pataxó descobriu a cooperação de pesquisadores que continuam apontando o caráter psicoterapêutico de sessões controladas de consumo da ayahuasca. Moura Pataxó é sempre ovacionado quando fala em seu tom enfático: “o meu pai era índio, a minha mãe era índia, nunca a gente teve o vil descaramento de beber droga imunda dizendo que isso era religião e cura! Esses bandidos... (monstruosos!) vão pagar com juros por tentarem mais uma vez destruir a nossa nação!”
A televisão está ligada, na churrascaria luso-brasileira. Como ninguém presta atenção, o mundo sonoro são as canções mais populares dos anos 2020, sobre casais se enganando de forma previsível no day-trade da mediocridade afetiva e social, berrando de caixinhas de som instaladas em alguns cantos do restaurante quase estrangeiro. S.H. não sabe dessa reportagem. Acreditou que todos os parceiros reconheciam a importância do silêncio midiático absoluto, inclusive fora do Brasil. Ora, o canal português tem conteúdos replicados em um canal Google.
Cena 4. Campo Grande, Deserto Central. Céu cinzento. Ar tóxico.
O pequeno avião Embraer jaz espatifado em 5 pedaços em um raio de 300 metros, em área da antiga capital de Mato Grosso do Sul. Bombeiros com dezenas de máscaras de oxigênio, os reservatórios cheios, saíram há pouco da cidade em funcionamento mais próxima do local, Ribeirão Preto. Perto da turbina esquerda, um pé feminino sem o corpo nem o sapato.
Na capital federal, junto à lagoa Rodrigo de Freitas, há um telão exibindo a cobertura jornalística do incidente com a aeronave, cujo voo não foi informado nos painéis do aeroporto de saída ou chegada. Ao surgir no telão o rosto de Moura Pataxó, a maioria das pessoas exultam, levantando copos, cachorros, chaves de SUV e bebês. Os pedalinhos param na lagoa carioca. Até o som do forró-‘nejo interrompe o seu trabalho de controle social. O Brasil para e preenche quase feliz o seu vazio existencial com a existência quase vazia de um líder performático cujos pais, segundo ele, eram cristãos de respeito apesar de sangue selvagem.