NAS ENTRELINHAS DO PASSEIO
Maria Fernanda de Melo
Estudante de Jornalismo no Instituto de Cultura e Arte na Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE. E-mail: mafecafe04@gmail.com.
“Minha filha, que bom que eu te encontrei!”. Olho para trás assustada com a mão que segura o meu ombro. Filha? Olho para aquele homem, baixo, olhos escuros como a sua pele. Ele segura um pandeiro verde na mão. “Moço, eu conheço o meu pai, acho que não sou sua filha”. Ele me olha, incrédulo. “É sim, quer que eu fale o seu nome completo?” Ele faz menção que vai improvisar um pagode, e eu o barro. “Não, não, muito obrigada, mas eu não sou mesmo a sua filha”. Sinto o meu rosto começando a esquentar, e o riso contido, nele e em mim, sai em risadas minimalistas. Ele pede algumas moedas e, em seguida, segue a sua rotina noturna.
Eu e alguns amigos mais próximos rimos de toda a situação. Tudo parece delírio. Olho para um deles e exponho: “eu quase acreditei que ele fosse meu pai mesmo”. Rimos. E eu me sinto em família. Algo que, mais tarde, descobriríamos que quase somos. A professora, Eri, começa a nos direcionar para a areia da praia. São quase 18h30, pessoas caminham para um lado e para o outro na beira-mar de Fortaleza. A feirinha, quase um shopping a céu aberto, expõe todo tipo de artesanato e itens de venda. Tudo do jeitinho que os turistas amam.
Chegamos na areia e Eri nos faz pensar. “Coloquem o coração para funcionar, sintam a cidade que também é de vocês”. Será mesmo que também é minha? Basta pronunciar uma única palavra que tenha a letra R que logo me informam: “Mas você não é daqui, né?”. Será mesmo que essa cidade, que a vida me incentiva a explorar, também é minha? “Vamos nos separar, vou esperá-los em um lugar fixo e vocês vão viver a cidade”, informa a professora.
Eu e alguns alunos vamos andando feirinha adentro. Eu não sinto nada. Procuro, quase em aflição, a minha pauta. “Já encontraram o texto de vocês?”. “Nada ainda, Maria”. Depois de algumas andanças, de receber propostas de passeios e jantares dos vendedores ambulantes, Caio, Johnnie e Andressa informam: “nós vamos andar de bike, querem ir?” Olho para os outros estudantes e surge um “nós vamos também?” conversado apenas em olhares. Depois de uma série de perguntas sobre como poderíamos fazer isso, eu, Adriele, Berg e Fabíola nos unimos aos três mosqueteiros que tiveram a ideia inicial.
O sonho começou. Primeiro, todos precisam baixar o aplicativo, realizar o cadastro, ser aprovados, adicionar um cartão de crédito e pegar o seu passe para as bicicletas gratuitas de Fortaleza. O desespero e a adrenalina correm soltos tanto porque o meu celular conta com 6% de bateria, quanto porque todos estávamos com medo de sermos assaltados durante o cadastro. O riso corre solto. “Se a ideia surgiu, é porque vai dar certo, né, Deus?”, lanço o meu questionamento olhando para o céu. Minutos depois, todos estão com seus cadastros aceitos, cartões aprovados e passes na tela do celular.
Sorrimos como crianças que receberam o melhor presente do mundo quando todos estão com as suas bicicletas verdinhas nas mãos. Pausa para foto. “Meu Deus, eu tô tão feliz”, escuto de um nós, mas esse sentimento fala por todos. Começo a pedalar de um jeito um pouco desengonçado. Paciência. Nervosismo. Não posso cair. Seguimos no sentido Praia de Iracema. Vamos até o começo de tudo. Descubro o congestionamento de pessoas fitness. Muitas bicicletas, pessoas correndo, só no trote. Gente rindo, se encontrando e se desencontrando. Blusas dos tons mais neons possíveis. A brisa é incrível. Eu me sinto em vida.
Damos a volta e seguimos em direção à Praia do Mucuripe, ao Mercado dos Peixes. Nunca fui para esse lado da cidade tão tarde da noite. Começo a me sentir tensa. Vou pedalando e reparando na troca de cenários. Capoeira, hip-hop, venda de acarajé, cachorro fazendo xixi só com duas patas no chão. Rio. A tensão abre espaço para a felicidade de viver algo novo, de novo. Chegamos no Mercado dos Peixes e, depois de um breve descanso, decidimos voltar. É o tempo de entregarmos as bicicletas e seguir com o nosso texto. Vou na frente. “Vai, Fernanda!”, tenho apoio.
De repente, duas pessoas estão correndo na minha frente. Escuto uma música calma e sinto que alguém está tentando me ultrapassar, também em uma bicicleta. Vejo que uma curva se aproxima. Começo a ficar ansiosa, com medo da curva do futuro. A ansiedade, que tem me acompanhado há dias, me faz esquecer a beleza de todos aqueles detalhes, e a tensão volta. Mas, então, escuto: “Vai tranquila, amiga”. Uma voz masculina, que se mistura com a música. E então ele passa do meu lado. Um senhor, de boné azul marinho, em uma bicicleta preta com uma caixinha de som, me diz: “Aproveita o passeio”. Sorrio. “Bom passeio para o senhor também”.
Vejo Fortaleza e me sinto nela. Me sinto parte do passeio. Percebo que a cidade acontece porque, em todo momento, eu também aconteço nela. Eu pertenço a ela, mesmo se for só durante esses passeios – tão comuns na minha trajetória. Três palavras me pegam mais do que muitos livros. A ansiedade fica pequena. O medo de cair abre espaço para o “cair faz parte”. Sinto-me em casa. E deixo a lágrima cair. Ela também faz parte do cenário.
Me reencontro com os amigos. Me sinto anestesiada com os últimos minutos. Devolvemos as bicicletas, conferimos se está tudo certo. Olhamos uns para os outros. Pausa para mais uma foto. Todos suados, felizes e cansados. Todos que fizeram, naquele 11 de maio de 2023, uma beira-mar cheia do entusiasmo de tentar algo novo e conseguir. Memória criada. Me despeço e sigo para casa. A bochecha chega dói, de tanto sorrir.