NOITES EM CLARO EVIDENCIA POTÊNCIA DO CINEMA DE PERIFERIA
Júlia Vasconcelos
Estudante de Jornalismo e egressa do curso de Cinema e Audiovisual, ambos da UFC, estagiária de Jornalismo na equipe de Assessoria de Comunicação do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ) e redatora de Cultura do Lab Dicas de Jornalismo. E-mail: juliavasconceloscontato@gmail.com.
Reportagem publicada na versão original
no website Lab Dicas Jornalismo, em 17/04/2023
O filme Noites em Claro, dirigido por Elvis Alves, entrou em 2023 na 16ª edição do festival de cinema Curta Taquary e venceu a categoria de Melhor Filme, além de outras duas. O curta-metragem foi realizado como trabalho de conclusão do curso Extensivo em Audiovisual da Escola de Arte do Centro Cultural Bom Jardim (CCBJ), em 2022.
Bastidores do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
Em março de 2023, dentro do já mencionado festival de cinema pernambucano, o filme foi exibido na mostra Curtas Fantásticos, quando contabilizou também vitórias nas categorias de Direção de Arte, assinada por Baruque Texeira, e Som, por Lucas Coelho e Robson Araújo.
Pré-estreia do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
Noites em Claro foi realizado de julho a setembro de 2022. Em outubro do mesmo ano, teve sua pré-estreia no histórico cineteatro São Luiz, em Fortaleza. No mês seguinte, o curta de 19 minutos também foi exibido no Cinema do Dragão do Mar, espaço cultural importante da cidade.
Entre as exibições do filme, o Centro Cultural Bom Jardim não podia ficar de fora. Afinal, o equipamento de cultura foi fundamental na realização do Noites em Claro, já que o projeto é fruto de um percurso formativo: o curso de audiovisual do CCBJ, conforme reitera o produtor do filme, Ricco Sales. Além de ter sido exibido no próprio Centro Cultural, as exibições citadas foram articuladas pela coordenação do curso.
O equipamento cultural do Bom Jardim canaliza formações e eventos pensados para o território do Grande Bom Jardim. O Noites em Claro é um produto que resulta do propósito da instituição e o comunica: formar jovens e fazer arte sem sair do Bom Jardim.
Nayana Santos, assistente pedagógica da Escola de Cultura e Artes do CCBJ que integra a equipe de coordenação de Audiovisual, contou que algumas crianças da vizinhança ficaram curiosas durante as gravações e, acolhidas pela equipe do filme, surpreenderam-se ao saber que estavam testemunhando cinema sendo feito pertinho de casa. “Esse momento ressoa no trabalho do CCBJ quando crianças e adolescentes descobrem que podem fazer um curso de audiovisual no próprio bairro”, declara.
A ideia de contar a história de um entregador de pizza assombrado pela aparição de seres sobrenaturais, Carlos (Éricles Carmo), cuja trilha sonora é o som da sirene policial, nasceu com o módulo de roteiro do curso, ministrado por Cíntia Lima. “Com a metodologia do módulo e incentivo da professora, eu consegui evoluir a ideia até um argumento e tive que fazer um pitching”, conta Elvis, que já tinha vontade de fazer um filme que tivesse como protagonista um entregador de comida.
Na época, as aulas eram remotas, e Elvis as acompanhava enquanto se deslocava para casa no ônibus da empresa onde trabalhava como publicitário. Para apresentar o pitching, o cineasta ligou a câmera e o microfone do celular e expôs a ideia da sua história para a turma e, indiretamente, para os passageiros à sua volta. Foi assim que o Noites em Claro começou a tomar forma, até ser selecionado como um dos projetos de conclusão do Extensivo.
O financiamento do projeto ocorreu por intermédio da coordenação de Audiovisual do Centro Cultural, mas não só. A fim de conseguir arrecadações que cobrissem os custos necessários para executar a obra independente, Ricco e Elvis, junto à equipe de produção do filme, criaram uma rifa on-line para complementar o orçamento.
Um produto cinematográfico que traz consigo as características de ser periférico, nordestino e independente costuma sofrer com a escassez de investimentos e com o difícil acesso às políticas públicas voltadas à produção audiovisual. “O Noites em Claro é a prova de que com pouco dinheiro a periferia entrega um trabalho bom e bem feito; imagina se fosse [feito com] um investimento maior”, afirma Ricco.
O curta-metragem de terror se serve do gênero para fazer uma crítica social relacionada à opressão policial incidente no Bom Jardim, onde o projeto foi realizado. A equipe também é majoritariamente formada por residentes do bairro de periferia da capital do Ceará.
Segundo o diretor, o curta é uma tentativa de explorar um medo característico de jovens da periferia, sobretudo jovens negros. Entusiasta do cinema de terror, Elvis buscou levar o espectador à experimentação do temor e da tensão através do horror. Já que relaciona a própria realidade a tudo o que escreve, a sua experiência enquanto morador de periferia inevitavelmente seria impressa na obra. “Noites em Claro é, em suma, um filme que visa denunciar a lógica racista e assassina de como a necropolítica atua sobre as periferias”, defende.
Still do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
No enredo, os moradores do bairro estão à mercê do toque de recolher da polícia, anunciado pela youtuber/radialista Da Quebrada (Amanda Freire). Carlos, que também batalha pelo seu ganha-pão durante a noite, vive sob a tensão dessa ronda da polícia. Por ser um jovem negro, o personagem teme tornar-se alvo de violência policial.
“O problema, seu Romeu, é quando eles [a polícia] decidem que nós somos os vagabundos”, a fala do protagonista ao personagem Romeu (Rafael Rodrigues) sublinha a denúncia trazida pela obra.
Still do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
Os lugares nos quais a história do Noites em Claro se passa são de grande importância para a construção narrativa do filme, uma vez que o espaço é constituinte do enredo e da crítica social embutida ali. Além da denúncia que o produto carrega, a mensagem presente no subtexto é: este filme é da periferia, e aqui também se faz cultura.
Não é à toa que a obra conta com três locações e todas elas são localizadas no Bom Jardim/Granja Lisboa, embora este nome não seja mencionado explicitamente ao longo do filme. Uma dessas locações é a pizzaria da família de Elvis, que, além da direção, assina também o roteiro do curta.
Still do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
No espírito da estética de periferia expressa além do discurso, o set e a base de gravação ficaram situados na rua Dandara Ketley. De acordo com Nayana Santos, o local foi cenário do assassinato da travesti cujo nome foi emprestado à rua: “conseguiu de certa forma trazer outros significados e lembranças”, comenta ela acerca da localização da base de gravação.
Ricco, que além de diretor de produção do Noites em Claro, também é morador do Bom Jardim, conta que o filme recebeu o apoio e a torcida não só do CCBJ, mas também de vizinhos, amigos e familiares. “Ele não é o primeiro filme feito no bairro e nem vai ser o último, mas ele tá aqui reafirmando que o bairro não é só violência, não é só o que os programas policiais mostram”, enfatiza.
Pôster do filme Noites Em Claro
Foto: Hiller Klan
Depois de dar a Carlos uma noite finalmente bem dormida, a equipe de Noites em Claro pode, assim como ele, deitar a cabeça no travesseiro, tranquila, com o orgulho de ter no portfólio uma evidência da potência do cinema de periferia, produto de resistência política e cultural.
Para Nayana, a vitória do filme no festival de cinema de Pernambuco funcionou como um demarcador. “Estamos no Brasil!”, ela declara. “É importante e incentiva a turma de crianças que está em uma formação de longa duração em Audiovisual aqui no Bom Jardim. Podemos mostrar para essas crianças que caminhos eles podem traçar e onde já foi possível chegar”, prossegue.
Assim, as expectativas do diretor se cumprem. O filme já se mostra, tal como almejado por ele, um farol para os jovens de periferia vislumbrarem que, apesar das dificuldades e da falta de acesso, é possível fazer cinema de qualidade dentro da periferia. Noites em Claro é rebento de um território onde se faz arte.