REBOLANDO
Isadora da Cruz de Sousa Marques
Bacharel em Ciências Biológicas pela Universidade Estadual do Piauí, técnica em Dança pela Escola Técnica Estadual de Teatro Prof. José Gomes Campos (PI) e graduanda em Dança pela UFC, no ICA. E-mail: isadoramarques800@gmail.com.
Buscando compreender feminilidade, sexualidade e consciência pélvica, questiono-me. Como as danças que movimentam a pelve ou o quadril influenciam a minha sexualidade, autoestima, flexibilidade e consciência corporal? Como o medo da movimentação da pelve está relacionado com a colonização e o machismo? Como mulher negra, de que maneira posso contornar esses obstáculos? Deixo claro que essas perguntas não terão uma resposta definida neste momento. Exponho agora uma parte dos meus pensamentos, minhas reflexões, pesquisas teóricas, minha prática e as mudanças ocorridas ao longo da minha investigação.
12 de outubro de 2022
Já era noite, coloquei uma playlist sobre descolonizar os quadris, de Maria Chantal (disponível no SoundCloud). E comecei...
Percebo que é preciso ter força nas pernas para realizar os movimentos. Meu “rebolado 360°”, que vai da esquerda para a direita, é mais fluido, enquanto o da direita para a esquerda tem mais peso. É fantástico perceber que, ao fazer a “tremidinha”, apoio o peso do meu corpo na perna esquerda. Será que vou conseguir distribuir o peso entre os dois membros inferiores em algum momento?
Mesmo com enxaqueca ocular e sentada na minha cama, continuo a rebolar, realizando o movimento de pulsar o glúteo. Sinto como se estivesse malhando essa região. Calor, suor, cansaço, leveza...
Realizando esses jogos de cintura e de soltura da pélvis, requebrando e rebolando, acredito que a ancestralidade e a autoestima e, por consequência, a sexualidade estão ligadas à forma como mexemos os nossos quadris e pélvis, bem como a se gostamos de sentir essas partes do corpo mexendo.
20 de outubro de 2022
Decidi que a playlist de hoje teria somente funk e brega funk, danças populares brasileiras do tempo presente. Suor, pernas tremendo, cansaço, leveza, felicidade...
Fiquei com um sentimento de que nunca tinha dançado tanto, minhas pernas não conseguem realizar nenhum outro movimento. Estou me sentindo tão leve, liberta de qualquer estresse ou ansiedade. Rebolar, tremer, quadradinho, o funk, o brega funk, quicar, bater no bumbum...
Não sinto nenhuma culpa de estar rebolando. Pelo contrário, sinto vontade de mostrar como rebolar, mexer a pelve, o quadril, me sentir liberta de qualquer amarra imposta pela sociedade na qual eu vivo. A árvore do esquecimento não conseguiu apagar do meu corpo a minha ancestralidade em tal potência, presente no remexer da minha pelve. Consigo ver e sentir no meu corpo a minha ancestralidade gritando: “eu estou aqui”, “não vou ser esquecida”. As batidas das músicas me fazem lembrar os tambores. Nesse momento, parei o que estava fazendo e fui pesquisar.
Adentrando a história, o Brasil passou por um processo colonial de caráter religioso exercido pelo cristianismo, ancorado em discursos de intolerância religiosa, no qual seu principal alvo são religiões derivadas da matriz africana. Na visão colonizada brasileira, danças que agradam os mais populares e assumem pontos de vista não eurocêntricos são rebaixadas no domínio artístico e qualificadas de forma pejorativa (Oliveira, 2021).
Os povos africanos são agentes da nossa formação social e cultural, tendo contribuído bastante para as danças. Aquelas que contêm ondulações, contrações e acentuada movimentação pélvica cooperam para o resgate do negro como sujeito da história brasileira, tendo em vista que o racismo permanece impregnado na nossa sociedade, explícita ou implicitamente (Moraes, 2016). Durante toda a colonização e atualmente, os corpos são moldados para se comportar em sociedade. Mas, esses corpos possuem características identitárias, genéticas e econômicas, que fogem da branquitude pertencente a uma elite econômica e/ou intelectual (Oliveira, 2021).
A dança com a bunda vem das práticas culturais da diáspora africana. Na contemporaneidade, movimentos seus também podem ser encontrados em outras danças brasileiras tais como pagode, arrocha, funk, brega funk e swingueira (São José, 2009). O próprio termo “bunda” provém do quimbundo, que, juntamente com o ambundo, deriva do tronco linguístico bantu. As danças no geral contribuem para a formação da cidadania e nacionalidade do indivíduo (Moraes, 2016).
Percebo com essa experiência que a minha autoestima, sexualidade e ancestralidade estão presentes no movimento da minha pelve. E que o medo da movimentação pélvica possui raízes muito mais profundas do que podemos imaginar.
Relaxada.
29 de outubro de 2022
Habituada com os movimentos pélvicos, percebi que alguns estão ficando mais fluidos, leves e rápidos. A fluência é controlada pelo tempo de aceleração e desaceleração da bunda, com movimentos fortes e extremamente ágeis. A “tremidinha” do bumbum está ficando mais evidente. Estou ganhando mais resistência e aguentando ficar por mais tempo “quicando” no chão.
Em muitos momentos, movo o meu quadril em direção ao chão, realizando movimentos circulares e sinuosos e movimentos para a frente e para trás. Vou acelerando e desacelerando. Estou mais desinibida do que antes. Será que a movimentação sem culpa da minha pelve e quadril está me alcançando? Ou ela já me alcançou? Ainda não sei responder essas perguntas, mas pretendo um dia saber.
02 de novembro de 2022
A movimentação da pelve exige bastante força dos membros inferiores e a coluna fortalecida. Minha pelve está ganhando mais mobilidade. Fico pensando: por que nós mulheres somos desencorajadas de rebolar? Na verdade, essa resposta eu sei.
Desde crianças somos tratadas como adultas e sexualizadas. A cada passo que damos desde o nascimento, somos jugadas, vigiadas e oprimidas. Nossas curvas: uma maldição; nosso corpo inteiro: uma prisão. Em festas, não podemos dançar sem sermos “comidas” pelo olhar de um macho da nossa espécie, isso quando fica somente no olhar.
Nosso corpo é sujeito e objeto de estudo da cultura, seu conhecimento é percebido através da construção social, cultural e política (São José, 2009). A cultura patriarcal-racista-capitalista-heteronormativa constrói valores morais e comportamentais para o corpo feminino em forma de preconceito e discriminação. O entendimento hegemônico sobre as imagens do corpo da mulher está conectado à graciosidade, beleza, sensibilidade e sensualidade, bem como ao comportamento socialmente recatado, manifesto no conter-se de expor o corpo feminino (Oliveira, 2021).
Essa lógica patriarcal, misógina e machista faz com que o meu corpo e o seu corpo sejam um simples instrumento dedicado ao prazer e ao olhar dos homens (Oliveira, 2021). Trata-se de um corpo como objeto de discursos de terceiros. Quero o meu corpo e a minha dança desconectados dessa forma de pensamento. Corpos femininos quietos, dóceis e benevolentes favorecem a quem?
Referências bibliográficas
MORAES, Marlene Faeda. A Disseminação da Dança Afro no Contexto Escolar. In: Os Desafios da Escola Pública Paranaense na Perspectiva do Professor PDE. 1., 2016. Cadernos PDE. Paraná, 2016.
OLIVEIRA, Taynnã Silva de. “Não Pode Bunda e Não Pode Remexer”: Femininos, Danças Populares e a Censura ao Corpo no Ambiente Escolar. Orientador: Prof. Dr. Rafael Guarato dos Santos. 2021. 68 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Dança) – Faculdade de Educação Física e Dança da Universidade Federal de Goiás, Goiás, 2021.
SÃO JOSÉ, Ana Maria de. Mulheres Frutas: Representações do Corpo na Dança do Créu. In: III Fórum Identidades e Alteridades, 3, 2009, Itabaiana- SE. Anais do III Fórum Identidades e Alteridades Itabaiana-SE: UFS, 2009. p. 1-15.