CLÍMAX (2018) E A REPRESENTAÇÃO DE ESTADOS ALTERADOS DE CONSCIÊNCIA NO CINEMA
Laura Branco Cavaignac de Souza
Graduanda em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará, no Instituto de Cultura e Arte. Bailarina formada em Jazz pela Escola de Dança Janne Ruth e pelo Studio de Dança Epílogos. E-mail: lalabrancocs@gmail.com.
Clímax é um filme franco-belga de 2018 realizado pelo diretor Gaspar Noé. Situada em 1996 e baseada em fatos reais, a obra retrata uma festa após o ensaio de uma companhia de dança na qual uma sangria é adulterada com LSD sem que os bailarinos saibam. Consequentemente, no decorrer da noite as coisas ficam cada vez mais bizarras devido aos efeitos que o alucinógeno tem em cada uma das personagens e a como isso afeta suas interações com os outros indivíduos na festa.
Gaspar Noé é um cineasta franco-argentino nascido em 1963. Enquanto diretor e roteirista, gosta de abordar em seus filmes temáticas relacionadas a sexo, violência e vingança. Noé costuma fazer uso de recursos não convencionais e modernos em seu cinema, como travellings imersivos e movimentos de câmera sem estabilidade alguma. Isso torna seus filmes muito sensoriais e permite ao diretor manipular os sentimentos dos espectadores com maestria. Algumas de suas outras obras são: Irreversível (2002), Enter the Void (2009) e Love (2015).
Esta análise busca entender a imersão fílmica presente em Clímax e como os elementos cinematográficos podem ser utilizados para representar estados alterados de consciência. Para isso, exponho aqui os recursos adotados pela direção do filme e as consequências de cada escolha, pois creio que todo detalhe contribui para que o espectador se entregue à narrativa e aos sentimentos que ela provoca.
Clímax começa com um plano zenital de uma das personagens se arrastando desesperada no meio da neve. Esse plano é quase que uma antítese, pois há em tela dois elementos que se contrastam. Vemos a neve, que ocupa a maior parte da mise-en-scène e que, com sua cor branca e sua textura macia, nos traz a ideia de calma, conforto e aconchego. Porém, com a ação e o estado da personagem, sentimos certo desespero, certa agonia. Entendemos então que o acolhimento que a neve proporciona aqui é na verdade um aprisionamento, e temos o mal-estar de ver alguém lutando por sua vida, tentando escapar dos braços dessa intempérie que parece ser tão aconchegante aos olhos, mas que na realidade é fatal. Esse plano simboliza o que está por vir.
Logo após os créditos, colocados em tela no começo do filme, dá-se início a uma parte introdutória, na qual as personagens são apresentadas ao espectador de diversas formas ao longo de quatro cenas. Na primeira introdução, assistimos às entrevistas de cada bailarino para entrar na companhia. Nesse momento, entendemos a individualidade de cada um, seus trejeitos, seus pensamentos e ambições. Como o plano revela esses vídeos sendo exibidos em uma televisão, há certa imersão. O espectador é colocado numa posição de julgador, avaliando individualmente cada um dos bailarinos, sem que eles tenham a consciência de que estão de fato sendo assistidos por alguém.
Na segunda introdução, assistimos à coreografia que fora ensaiada pelo grupo. A partir da composição coreográfica, é possível entender como todos aqueles bailarinos juntos produzem um trabalho de qualidade, o que significa haver certa sintonia e uma relação boa entre eles. O conjunto possui um caráter frenético, com muitos elementos e movimentações acontecendo ao mesmo tempo, o que gera certa poluição visual e dá muitas vezes a ideia de alucinação. Creio que a coreografia representa os acontecimentos do próprio filme, e para compreender melhor, é possível dividi-la em três subpartes:
1. No início do conjunto, temos figuras e deslocamentos mais organizados. As linhas das figuras se dão majoritariamente em diagonais que muitas vezes se cruzam, o que causa um efeito visual de bagunça, mas ainda assim organizada. Há solos e pequenos grupos reproduzindo sequências enquanto vemos outras pessoas se deslocando – elementos estes que ora aparecem separados, ora são justapostos –, o que gera uma alternância entre muitos e poucos corpos em cena. Isso cria a sensação de que as personagens se dividem em grupos e que cada um interage e se diverte da sua própria maneira, assim como no início de uma festa onde todos estão “cada um na sua” ainda. Isso tudo acontece em um plano geral e frontal com uma câmera estática, trazendo mais ainda a ideia de organização e estabilidade que o começo do filme retrata.
2. Logo em seguida, são introduzidos movimentos de câmera que nos levam a um plano zenital. Nesse momento, os bailarinos começam a reproduzir figuras nas quais eles estão mais próximos e “amontoados”. Essas figuras já não remetem mais a formas geométricas e retas, como as diagonais e linhas. Tais elementos coreográficos somados ao plano zenital e aos movimentos da câmera, que nesse momento se desloca de acordo com os passos e até gira, estabelecem então uma sensação de desorganização e de início de uma alteração mental, pois ficamos desnorteados com as informações em tela.
3. Já no final da coreografia, as figuras tornam-se ainda mais desordenadas, e há muitos movimentos em grupo que cria certo fluxo, conferindo à coreografia um tom mais “alucinogênico”. Cria-se então a sensação de que aquele grupo, que no começo era dividido, agora está passando por certo delírio coletivo. A partir desse momento, a câmera parece ganhar vida própria, deslocando-se pelo espaço de forma não convencional e na maior parte do tempo numa plongée. Algumas vezes ela opta por seguir uma personagem ou outra em específico e acaba não enquadrando a pista de dança inteira. Isso gera certo desconforto e curiosidade, tornando o nosso cérebro responsável por preencher aquela lacuna de imagem que nos falta. No decorrer do filme, esse recurso é empregado diversas vezes em um ato de repetição que busca provocar diferentes tipos de sensações a cada vez que é aplicado.
Após a coreografia, é feito o terceiro tipo de introdução das personagens. Inicia-se com um travelling que revela as conversas e relações entre aqueles indivíduos de forma observadora e moderna. Esse recurso traz um tom de voyeurismo ao filme, e o espectador tem a consciência de que a câmera existe, colocando-se no lugar dela, como um observador que persegue aqueles bailarinos um por um. A câmera acompanha uma personagem e, a partir do momento em que esta conversa com outra pessoa, passa a seguir esse outro indivíduo, e assim por diante. Com essa mudança de foco de uma personagem para a outra, a câmera se estabelece como algo que as conecta, que as contagia, assim como a sangria adulterada fará posteriormente.
Então, chegamos à última cena de apresentação das personagens. David se afasta da pista de dança. Como a câmera o estava acompanhando, ela para de enquadrar a festa e estabelece um plano médio e frontal da conversa entre David, Selva e Lou. Esse momento se mostra mais calmo e estático, quando nos sentimos afastados da festa, de lado. Começa então uma alternância de vários planos mostrando essas conversas afastadas da festa. As composições de tais planos seguem um padrão, pois há sempre duas ou três pessoas em tela enquadradas num plano frontal médio. Enquanto há na cena anterior uma imersão de abordagem moderna, aqui temos uma maneira clássica de observar as personagens. Não há mais movimento de câmera, o espectador não se coloca mais no local de voyeur, mas sim perde a consciência de seu próprio corpo e olhar naquele espaço. Desfaz-se a sensação de estar assistindo a algo, e cria-se a sensação de simplesmente estar ali, como no Cinema Clássico. Aqui novamente sabemos que há algo acontecendo fora de quadro, mas não conseguimos vê-lo. Isso ocorre porque ouvimos os sons da festa, mas apenas conversas paralelas são enquadradas. Quando percebemos então que alguém colocou ácido na sangria, temos a sensação de que estávamos distraídos com essas conversas, quase que em um transe, inconscientes. Estimula-se então mais uma vez a instigação e a necessidade do nosso cérebro de complementar e decifrar o que está acontecendo fora de quadro naquele momento. Outro fator que amplifica esse efeito são os diálogos entre as personagens, que muitas vezes estão falando sobre alguém mas não há como saber a quem se referem, pois muitas vezes elas apontam e olham em direção a uma pessoa que não está em quadro.
Um recurso interessante utilizado nessa cena é o black-out. Quando vemos Emanuelle colocando seu filho Tito para dormir, são introduzidos pequenos black-outs que remetem aos olhos da criança piscando. A cena entre a mãe e o filho acaba, e passamos a ver as conversas entre outras pessoas, porém os black-outs continuam a acontecer. Percebemos então que já não se trata mais dos olhos de Tito se fechando para dormir, mas sim dos olhos dos bailarinos piscando. Isso dá a entender que eles estão começando a ficar alterados e desorientados.
Após toda essa apresentação dos personagens e das suas relações, há um plano de transição da mesa do DJ, e depois nos deparamos novamente com um plano zenital da pista de dança. Os bailarinos estão fazendo uma roda, e uma pessoa de cada vez vai até o centro e mostra os seus passos para o grupo. Apesar do plano zenital já causar certo desconforto, a figura ainda se mantém organizada, e a câmera é estática nesse momento, o que significa já haver algum nível de alteração nas personagens, mas ainda não tão alto. Há então outro plano da mesa do DJ no qual se inicia um movimento de câmera, e a partir disso voltamos para o plano zenital da pista de dança e começamos a sentir mais o efeito do LSD. A figura então começa a ficar mais desorganizada, com mais pessoas entrando na roda e desmanchando-a. Seus passos perdem qualidade técnica e força, alguns ficando mais desenfreados e outros mais lerdos. Somando isso aos movimentos de giro da câmera, a sensação causada é de bagunça, e podemos entender que há uma desordem e um desequilíbrio psicológico acontecendo com todos ali presentes. Posteriormente, somos retirados da pista de dança e jogados de volta nela várias vezes. A cada vez que voltamos, podemos perceber a progressão do efeito do ácido na mente daquelas pessoas.
Há então a inserção de uma sequência de créditos no meio do filme, o que é um tanto incomum, mas aqui funciona como um desses momentos nos quais temos que decifrar o que acontece fora de quadro, pois por trás dos créditos vemos somente a pista de dança vazia. Temos que pensar no que pode estar acontecendo nesse momento, que é tempo suficiente para o alucinógeno fazer ainda mais efeito.
Após os créditos, o filme então volta para o formato de travelling acompanhando as personagens. Porém, há uma diferença agora: não há mais o uso de steadycam, e sim de câmera na mão. Isso causa um efeito de vertigem e tontura muito maior. Visto que o recurso de associar o travelling à visão do espectador já foi utilizado no início do filme, a audiência de forma subconsciente entende ser aquela a sua visão: se esta possui movimentos instáveis, então o observador está tão alterado quanto as personagens. Temos assim a sensação de também fazermos parte daquilo e bebermos a sangria.
Passamos então a acompanhar Selva percebendo que algo está errado e que alguém adulterou a sangria. A partir disso, uma série de conflitos se desenrola. Começamos a ver as reações de cada indivíduo diante dos efeitos do LSD: alguns ficam tristes, outros eufóricos, e muitos psicóticos. O ritmo e a movimentação do travelling está sempre em sintonia com as personagens centrais na tela, e passeamos com elas pelo prédio, rompendo os limites da festa e não mantendo mais o salão como o local principal dos eventos ocorridos. Conforme as personagens se deslocam pelo espaço, as cores da iluminação e do cenário sofrem mudanças bruscas, e surgem ambientes monocromáticos que representam seus diferentes sintomas e estados de espírito.
A câmera só se torna estática quando Selva, após um surto, se deita no sofá. Entendemos então que o torturante descontrole do corpo causado pelo alucinógeno não está só no impulso de agir de maneira desenfreada, mas também na impossibilidade de agir. Selva se vê “presa” no seu próprio corpo, sem poder fazer nada quanto ao que acontece naquele lugar. A ação de colocar as mãos dentro da sua meia-calça e sentir alívio, significa que ela está se aconchegando no próprio corpo, sozinha e parada. Porém, quando ela tenta tirar as mãos dali e não o consegue, esse sentimento de impotência e de aprisionamento dentro de si mesma é revelado. Por mais que o plano seja estático e os movimentos da personagem pequenos, a sua respiração ofegante e os gritos que se ouvem ao fundo criam uma atmosfera agonizante. Faz-se mais uma vez o uso de um elemento não enquadrado para instigar a curiosidade e o desespero; sentimo-nos aflitos por não saber o que se passa. Aqui, esse recurso se encaixa de maneira perfeita, pois transmite exatamente a sensação de Selva para o espectador, que ouve gritos, mas se sente impossibilitado de fazer algo a respeito, pois não vê e não sabe exatamente o que está acontecendo. O público então se vê preso no plano assim como Selva está presa no seu corpo.
Após Selva conseguir se reerguer do sofá, a câmera a acompanha num travelling, começando a girar e reproduzindo movimentos ainda mais bruscos, instaurando o caos. Antes disso, Emanuelle prendera Tito no cômodo onde fica o quadro de energia do prédio, acreditando que o estava protegendo. Quando voltamos à pista de dança com Selva, o ritmo fica um pouco mais lento, criando uma vertigem e dando a entender que todos estão muito alterados e já lerdos. A energia cai, e as luzes ficam vermelhas, o que significa que Tito provavelmente morreu de um choque elétrico. A música fica pausada, e o filme então assume tom mais dramático e vagaroso. Voltamos então a andar pelos outros cômodos do prédio com as personagens, mas agora de forma lenta e cansada.
O ritmo do filme volta a acelerar depois que Gazelle foge do banheiro. A câmera gira, fica de ponta cabeça e volta para a pista de dança de forma quase descontrolada. Somando à luz vermelha e aos movimentos corporais dos bailarinos os movimentos de câmera não convencionais e desenfreados, o ambiente se torna um verdadeiro inferno assustador. Essa cena causa um enorme desconforto junto de medo, pânico e agonia, para que assim o espectador se sinta tão psicótico quanto as personagens.
A sequência final do filme se passa no dia seguinte e começa também de ponta cabeça. Então, há vários planos zenitais mostrando o estado em que todas as personagens se encontram. Esse é um momento bem “parado”, com câmera estática e poucos movimentos. Resta uma sensação de ressaca, de cansaço do dia seguinte à festa.
Clímax é um excelente longa-metragem e nos permite vivenciar todas as emoções e sensações presentes nas psiques das personagens. Em algumas das cartelas do filme, podemos ler “Nascer é uma oportunidade única” e “Morrer é uma experiência extraordinária”. Creio que Noé sintetiza muito bem as sensações inerentes a esses acontecimentos na realidade do filme. Para as personagens, muitas das suas experiências na noite retratada lhes causam o sentimento de nascer ou o de morrer, e nascemos e morremos junto delas diversas vezes no decorrer da obra.